segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Igualdade na Via Administrativa e Judicial: Vedação ao Comportamento Contraditório

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (Constituição Federal de 1988).
O Princípio da Igualdade material tem aplicação não apenas quando do tratamento a ser dispensado a pessoas diferentes, mas possui também aplicação do tratamento a ser dispensado à mesma pessoa em instâncias diferentes. Parece lógico, mas nem sempre tal princípio é respeitado nesses termos.
O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) possui normas internas procedimentais que ajudam a instrumentalizar seus processos administrativos de acordo com a legislação vigente. Como o INSS é pautado pela estrita legalidade, tais procedimentos são demasiadamente rigorosos, pois não gozem do livre convencimento, como no judiciário.
O STJ tem firmado posicionamento no sentido de que, em razão do Princípio da Igualdade, o INSS tem que dar o mesmo tratamento ao segurado na via judicial que suas instruções determinam na via administrativa, salvo quando uma instrução vai além da lei, e cria regras, ou quando apenas aceita exclusivamente algumas provas.
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. PREVIDENCIÁRIO. CONVERSÃO DE TEMPO DE SERVIÇO ESPECIAL EM COMUM. EXPOSIÇÃO A RUÍDO. LIMITE MÍNIMO. 1. Estabelecendo a autarquia previdenciária, em instrução normativa, que até 5/3/1997 o índice de ruído a ser considerado é 80 decibéis e após essa data 90 decibéis, não fazendo qualquer ressalva com relação aos períodos em que os decretos regulamentadores anteriores exigiram os 90 decibéis, judicialmente há de se dar a mesma solução administrativa, sob pena de tratar com desigualdade segurados que se encontram em situações idênticas. 2. Embargos de divergência rejeitados (STJ - EREsp: 412351 RS 2004/0017645-6, Relator: Ministro PAULO GALLOTTI, Data de Julgamento: 27/04/2005,  S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJ 23.05.2005 p. 146)
Este que vos escreve tem sido ferrenho defensor da aplicação da Isonomia nos processos administrativos e judicias, ao passo que tenho vociferado que direitos já reconhecidos pela Administração sejam questionados novamente em juízo.
No último ano, ao assessorar para a TNU e TRU, tive o prazer de poder opinar em algumas decisões. Quando aventada a tese de que a renda era inferior a um quarto de salário-mínimo e o INSS já havia declarado em laudo social que restava incontroversa a miserabilidade e a procuradoria do INSS argumentara a necessidade laudo, fiz questão de apontar ao tratamento anti-isonômico que seria dado ao jurisdicionado se a justiça desconsiderasse o laudo do próprio INSS e aceitasse a argumentação judicial daquela autarquia.
Acordão publicado, o magistrado entendeu que o comportamento da autarquia realmente seria contraditório e que se, havia reconhecimento administrativo, em via judicial o INSS não poderia dar outro tratamento ao segurado, afastando reconhecimentos de direitos realizados em seu próprio processo administrativo. É o reconhecimento do instituto do direito romano do venire contra factum proprium, a vedação ao comportamento contraditório de reconhecer com incontroverso um ponto no processo administrativo e questioná-lo em juízo.
Sem mais delongas, deixo-lhes com a possibilidade de se deleitarem com o acórdão a seguir.  
VOTO-EMENTA
BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR. ART. 20 PARÁGRAFO 3o DA LEI NO 8.742/93. INCONSTITUCIONALIDADE PARCIAL SEM PRONÚNCIA DE NULIDADE DECLARADA PELO STF. AVALIAÇÃO SOCIAL REALIZADA NA VIA ADMINISTRATIVA DEMONSTRA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE COMPROVADA. PROIBIÇÃO DO "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM". RECURSO INOMINADO IMPROVIDO.
1.A CF/88 prevê em seu art. 203, caput e inciso V a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso.

2. Para a concessão do benefício de amparo social devem estar presentes dois pressupostos, quais sejam: a comprovação de não possuir o requerente meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por seus familiares, somada ao implemento da idade de 65 anos ou à deficiência física ou mental, sendo estes os únicos requisitos necessários à concessão do referido benefício.

3. Na situação em apreço, restou comprovado que o autor é portador de retardo mental grave e epilepsia, causando-lhe limitação no desempenho de atividades compatíveis com a sua idade, caracterizando restrição na sua participação plena e efetiva na sociedade em condições de igualdade com as demais pessoas, especialmente com outras crianças/adolescentes (laudo pericial constante no anexo 11). A controvérsia recursal cinge-se tão somente ao requisito da miserabilidade.

4. A Lei no 8.742/93, em seu art. 20, §3o, considera incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

5. O egrégio Supremo Tribunal Federal, inicialmente, em 1998, declarou a constitucionalidade desse dispositivo legal (Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1232-1-DF). Entretanto, no julgamento da Reclamação nº 4374, bem assim do RE 567985, em 19/04/2013, declarou a inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, reconhecendo que na análise de situação concreta, o juiz não está impedido de averiguar outros elementos a levarem à conclusão do estado de pobreza do(a) postulante do benefício versado na Lei Orgânica da Assistência Social, não se prendendo ao parâmetro estrito da regra legal de um quarto do salário mínimo.

6. Considerou-se que as leis 10689/2003, 10836/2004 e 10219/2001 abriram portas para a concessão do benefício assistencial fora dos parâmetros objetivos fixados pelo art. 20 da LOAS (Lei 8742/93), e assim os juízes e tribunais passaram a estabelecer o valor de meio salário mínimo como referência para aferição de renda familiar per capita. Mais que isso, a miserabilidade familiar pode ser aferida inclusive por outros meios de prova constantes dos autos.
7. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, para fins de concessão de benefício assistencial, deve ser excluído do cálculo familiar per capita qualquer benefício de valor mínimo independentemente de se tratar de benefício assistencial ou previdenciário, aplicando-se, analogicamente, o disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso (STJ, AgRg no AREsp 22761/PR, DJe 19/10/2012).
8. No caso concreto, além da declaração de composição familiar, a sentença de piso fundamentou o preenchimento do requisito da miserabilidade segundo as informações contidas na avaliação social realizada pelo próprio INSS. Frise-se que o motivo do indeferimento do requerimento administrativo consistiu apenas na inexistência de incapacidade. Com efeito, a avaliação social levada a cabo pela autarquia previdenciária consignou que:
“O menor convive apenas com sua genitora, 33, solteira, curso médio completo, porém, desempregada. Divida entre os cuidados com os filhos, o maior de 14 anos, ainda necessita buscar mios pra prover a sustentabilidade da família. Portanto, eventualmente exerce serviços de faxina e lavagem de roupa quando solicitados pela vizinhança. O recebimento do Bolsa Família, no valor de cento e noventa e sete reais é a única fonte de renda fixa que pode contar. O relacionamento com o ex companheiro/pai do menor, não permanecera por muito tempo. Dele não recebe qualquer tipo de ajuda material e menos ainda, apoio afetivo. O grupo familiar não possui moradia própria. Segundo informação, a residência de três cômodos ocupada, fora cedida temporariamente por amigos. Está situada em região metropolitana. Há vulnerabilidade ainda no acesso a determinadas políticas públicas que não chegam ao alcance da população local. Dentre estes serviços, destaca-se o não abastecimento de água encanada, sendo esta oriunda de um poço profundo, onde as condições higiênicas desfavorece o consumo. A criança também, tem somente acesso a um deficitário tratamento de saúde mediante pagamento, tão difícil é a dificuldade atendimento pelo SUS”
Posto isto, verifica-se que a renda per capta familiar é inferior a 1/4 do salário mínimo (R$ 197,00).
9. O recurso inominado do INSS, de forma contraditória, limita-se a requerer perícia social a ser designada pelo juízo a fim de ser constatada a vulnerabilidade social. Ocorre que aceitar da Administração Pública argumentação que contradiz sua própria avaliação social seria causar incerteza ao jurisdicionado ou, no mínimo, descrença no poder judiciário, que estaria elidindo um direito que é garantido nos próprios balcões das repartições públicas.
Segundo Anderson Schreiber (2005, p. 50 apud WALDRCIH, Rafael S., 2014, p. 125) a vedação ao comportamento contraditório não busca apenas coerência por si só, mas a proibição de despertar direitos que não podem ser garantidos. Verbis:
De fato, a proibição de comportamento contraditório não tem por fim a manutenção da coerência por si só, mas afigura-se razoável apenas quando e na medida em que a incoerência, a contradição aos próprios atos, possa violar expectativas despertadas em outrem e assim causar-lhes prejuízos. Mais que contra a simples coerência, atenta o “venire contra factum proprium” à confiança despertada na outra parte, ou em terceiros, de que o sentido objetivo daquele comportamento inicial seria mantido, e não contrariado.
Nesse sentido, impõem relembrar a válida lição do eminente Ministro Rosado de Aguiar sobre o assunto:
O princípio da boa-fé deve ser atendido também pela administração pública, e até com mais razão por ela, e o seu comportamento nas relações com os cidadãos pode ser controlado pela teoria dos atos próprios, que não lhe permite voltar sobre os próprios passos depois de estabelecer relações em cuja seriedade os cidadãos confiam. (REsp 141.879/SP, Rel: Min. Rosado de Aguiar, DJ 22.06.1998)  
O positivismo jurídico deve garantir também aos administrados a segurança nas relações jurídicas sobre as que estão imputados. Afinal, o judiciário não deve ser o último receptáculo de todas as demandas. A finalidade do poder administrativo é também evitar que toda demanda seja elucidada pelo controle jurisdicional.
10. Por tal razão, deve o julgado ser mantido em todos os seus termos e pelos próprios fundamentos, na forma prevista no art. 46 da Lei nº. 9099/95, verbis:

Art. 46. O julgamento em segunda instância constará apenas da ata, com a indicação suficiente do processo, fundamentação sucinta e parte dispositiva. Se a sentença for confirmada pelos próprios fundamentos, a súmula do julgamento servirá de acórdão.

10. Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso para confirmar a sentença que julgou procedente o pedido formulado na inicial. Condeno o(a) recorrente em honorários advocatícios, fixados em 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação, devidamente atualizado, a teor do art. 55 da Lei nº. 9.099/95.

Um comentário:

  1. Professor, você poderia colocar o número do processo do último acórdão?

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